domingo, 28 de novembro de 2010

Eu vou pagar a conta do analista pra nunca mais ter que saber quem eu sou

Ideologia é uma merda. Pensar que cada dia mais caminho pra um chão onde reinarão os ideais construídos em mim como peças de um quebra-cabeças pré-fabricado pra ser perfeito me amedronta. Não tenho controle sobre o que posso vir a me tornar, sinto que meus pensamentos não são meus. Talvez eu minta pra mim. Talvez eu simule bem que não sei fingir.
Laços sociais sufocam e destroem qualquer tentativa de vir a ser.
Agradar é um verbo tão egoísta quanto não fazê-lo. Gera sentimentos difíceis de definir, como se o destino me tivesse imposto uma tarefa com objetivos indefinidos. Como se, no auge dos meus 18 anos, me tivessem imposto uma horrorosa necessidade de reciprocidade, que reluta em aparecer dia-a-dia, esmagando espontaneidades e sentimentos sinceros.
Custa muito criar uma vida fictícia, criar vícios e Deuses. Aos poucos a rotina da obrigação trata de apagar sonhos e mostrar a realidade de seres humanos imperfeitos, mutáveis. A realidade paralela se desmancha e passa a dar lugar a outras expectativas, outras formas de continuar vivendo e procurando sentido pra isso. O vão entre as duas portas parece demasiadamente longo, porque é preciso se preparar pra novos começos. Inevitáveis recomeços.


Por Não Estarem Distraídos

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector.